segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

JÚLIO DINIS


DESESPERANÇA



Meu Deus, que destino!... Viver isolado,
Sem ter quem no mundo me possa entender!
Não era esta a vida que tinha sonhado
Nos sonhos passados dum outro viver!

As feras, as aves, as flores, quanto existe,
Se abrasam num terno, dulcíssimo ardor!
Só eu, solitário, viver sempre triste!
Viver ? — Não. Que é a vida, faltando-lhe o amor ?!

É ermo entre gelos, é hórrida noite,
Onde um só astro, sequer, nem reluz!
Como hei-de, sem crenças onde a alma se acoite,
Do Gólgota ao cimo levar minha cruz ?!

O anseio, este fogo que lento me inflama
Não hei-de apagá-lo num gosto real?
E os vagos transportes que sente quem ama
Terá de abafá-los paixão mundanal?

Não ter seio amigo no qual eu repouse
A fronte cansada de ardente pensar,
Uma alma conforme com a minha, a quem ouse
Dizer quanto sinto no peito a pesar I

Ai! triste, que sorte! Viver entre gelo,
Sentindo atear-se cá dentro um vulcão!
Nutrir tanto afecto no peito, e perdê-lo!...
Desejos que abrasam, mantê-los em vão!

Meu Deus! És injusto!... mas oh! se blasfemo,
Perdoa, que a mente mal pensa o que diz!
Perdoa, perdoa-me, ó Ente supremo,
Concede-me ainda que eu seja feliz!

Oh! dá-me a ventura que em sonhos já tivel...
Uma alma que est’alma soubesse entender!
Um ente, se acaso na Terra ele vive,
Que possa este vácuo de amor preencher.

Que imenso tesouro de afectos lhe dera !
Sorrira-lhe a vida num éden gentil!
Entre outros segredos então lhe dissera
Tais falas, cortadas por beijos aos mil!

Ai! foge, deixemos da vida mundana
Seus vãos devaneios, seu fogo falaz!
Busquemos sozinhos deserta cabana,
Aonde não turve ninguém nossa paz!

Que imensos prazeres que lá nos esperam I
Que ledo futuro que então nos sorri!
Ali não há mágoas, que o peito laceram,
Dos homens o bafo não chega até 'li!

Que vida, essa vida que então lá teremos
Tão rica de afectos, de gozos sem fim!
Que ternos enlevos, que doces extremos,
Que belos os dias, passados assim!

D'esp'ranças e flores no quadro tão lindo
No cimo do monte, da aurora ao nascer,
Iremos saudá-la, dizer-lhe: — Bem-vinda
Tu sejas, que à Terra dás luz e prazer!
Depois, vendo as aves com doce harmonia
Soltarem seus cantos no bosque d’além,
Na língua dos anjos, na maga poesia,
Aos Céus nossos hinos se elevam também;

Oremos ao Eterno, sagremos-lhe os cantos,
Que d'alma espontâneos prorrompem então!
Depois resolvamos provar dos encantos
Da vida inefável que anima a solidão

Da tarde ao crepúsculo, nos breves instantes
Dessa hora em que se unem as sombras e a luz,
Também nossas almas unidas e amantes
Anelam delícias que a noite conduz!

Ali, o murmúrio da rápida brisa
Banhada em perfumes roubados à flor,
E a linfa que mansa no prado desliza,
Virão segredar-nos mil falas d'amor!

— Amor — repercutam os ecos da serra!
— Amor — lá das aves se escute na voz!
E as nuvens, as fontes, os bosques, a terra,
— Amor — só respiram em torno de nós!

— Amor — alta noite veremos escrito
Com letras douradas no livro de Deus!...
Presságio divino do gozo infinito,
Que um dia teremos unidos nos Céus.

E um dia lá corre, de amor bafejado,
Ao outro que surge prazeres iguais!
E sempre esta vida!... Mas, ai! desgraçado!...
Que assim me enlevava d'esperanças banais!

Debalde iludir-me procuro num sonho!
Cruel desengano, cruel que ele é!
Ele aponta o futuro, sombrio e tristonho,
Sem crenças, sem glória, sem vida, sem fé!

A mim só me resta viver isolado!
Sem ter quem no mundo me possa entender!
Ai! sonhos tão belos que outrora hei sonhado I
Delícias passadas dum outro viver.

Júlio Dinis

Júlio Dinis, pseudónimo literário de Joaquim Guilherme Gomes Coelho, nasceu no Porto em 14 de Novembro de 1839, ali falecendo a 12 de Setembro de 1871. Médico, escritor e poeta, deixou um importante legado de obras, entre as quais “As Pupilas do Senhor Reitor”, “Uma Família Inglesa”, “Serões da Província” e “Os Fidalgos da Casa Mourisca”, parte das quais adaptadas ao cinema e ao teatro.

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