sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

José Gomes Ferreira


A minha solidão

A minha solidão
Não é uma invenção
Para enfeitar noites estreladas…

… Mas este querer arrancar a própria sombra do chão
E ir com ela pelas ruas de mãos dadas.

… Mas este sufocar entre coisas mortas
E pedras de frio
Onde nem sequer há portas
Para o Calafrio.

… Mas este rir-me de repente
No poço das noites amarelas…
- única chama consciente
Com boca das estrelas.

… Mas este eterno Só-Um
(mesmo quando m queima a pele o teu suor)
- sem carne em comum
Com o mundo em redor.

… Mas este haver entre mim e a vida
Sempre uma sombra que me impede
De gozar na boca ressequida
O sabor da própria sede.

… Mas este sonho indeciso
De querer salvar o mundo
- e descobrir afinal que não piso
O mesmo chão do pobre e do vagabundo.

… Mas este saber que tudo me repele
No vento vestido de areia…
E até, quando a toco, a própria pele
Me parece alheia.

Não. A minha solidão
Não é uma invenção
Para enfeitar o céu estrelado…

… mas este deitar-me de súbito a chorar no chão
E agarrar a terra para sentir um Corpo Vivo a meu lado.
.
José Gomes Ferreira

José Gomes Ferreira nasceu no Porto em 9 de Junho de 1900 e faleceu a 8 de Fevereiro de 1985
“Escritor, poeta e ficcionista português, natural do Porto. Formou-se em Direito em 1924, tendo sido cônsul na Noruega entre 1925 e 1929. Após o seu regresso a Portugal, enveredou pela carreira jornalística. Foi colaborador de vários jornais e revistas, tais como a Presença, a Seara Nova e Gazeta Musical e de Todas as Artes. Esteve ligado ao grupo do Novo Cancioneiro, sendo geral o reconhecimento das afinidades entre a sua obra e o neo-realismo. José Gomes Ferreira foi um representante do artista social e politicamente empenhado, nas suas reacções e revoltas face aos problemas e injustiças do mundo. Mas a sua poética acusa influências tão variadas quanto a do empenhamento neo-realista, o visionarismo surrealista ou o saudosismo, numa dialéctica constante entre a irrealidade e a realidade, entre as suas tendências individualistas e a necessidade de partilhar o sofrimento dos outros. Da sua obra poética destacam-se, para além do volume de estreia, Lírios do Monte (1918), Poesia, Poesia II e Poesia III (1948, 1950 e 1961, respectivamente), recebendo este último o Grande Prémio de Poesia da Sociedade Portuguesa de Escritores. A sua obra poética foi reunida em 1977-1978, em Poeta Militante. O seu pendor jornalístico reflecte-se nos volumes de crónicas O Mundo dos Outros (1950) e O Irreal Quotidiano (1971). No campo da ficção escreveu O Mundo Desabitado (1960), Aventuras de João Sem Medo (1963), Imitação dos Dias (1966), Tempo Escandinavo (1969) e O Enigma da Árvore Enamorada (1980). O seu livro de reflexões e memórias A Memória das Palavras (1965) recebeu o Prémio da Casa da Imprensa. É ainda autor de ensaios sobre literatura, tendo organizado, com Carlos de Oliveira, a antologia Contos Tradicionais Portugueses (1958).”

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