segunda-feira, 29 de março de 2010

Diogo Clemente/Carminho



A Voz

Às vezes há uma voz que se levanta
Mais alta do que o mundo e do que nós
E faz chover-me os olhos quando canta
Num pranto que emudece a minha voz.

Aguda-me os sentidos e o tempo
Ao ponto mais distante do que sou
E abraça aquele lugar que tão cinzento
Se esconde sob a névoa que ficou.

E grita-me no peito quando sente
Chegar a face triste de um amor
Mais alta do que o mundo e do que a gente
A voz já não é voz, chama-se dor.

Diogo Clemente

Diogo Clemente é poeta, compositor e produtor, escrevendo este poema para Carminho, uma jovem vedeta do fado que deu a volta ao mundo para, como ela diz, encontrar o seu "eu", e acaba de lançar o seu primeiro CD, "Carminho - Fado".
Carminho foi ontem entrevistada na televisão, no programa “As mulheres da minha vida” e na edição de Abril da revista “Selecções do Reader’s Digest

domingo, 28 de março de 2010

Aníbal José de Matos

Pedras soltas

Descalço
Caminho sobre as pedras
Da calçada
Que apesar
De aguçadas não me ferem,
Porque olho mais além
Por cima das estrelas.

Magoam-me, sim, as palavras
Que auguram
Cenários de amargura.

Piso as pedras do caminho,
Como flores
Que desabrocham
E perfumam minha dor.

Porque o meu olhar está distante.

Acaricio a berma das estradas
Que me afastam do choro
Dos que sofrem
Pelas pedras que a vida
Lhes atira
Sem dó nem piedade.

Aníbal José de Matos – Figueira da Foz (Portugal) –
27 de Março de 2010


Esta poesia acaba de ser publicada no blogue "CURRUPIÃO [ave canora do Brasil]", do meu companheiro de S. Paulo - Brasil, Júlio Saraiva.
Grato pela deferência.

sábado, 27 de março de 2010

FERREIRA GULLAR



Poema Brasileiro

No Piauí de cada 100 crianças que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade

No Piauí
de cada 100 crianças que nascem
78 morrem antes de completar 8 anos de idade

No Piauí
de cada 100 crianças
que nascem
78 morrem
antes
de completar
8 anos de idade

antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade
antes de completar 8 anos de idade


Não há vagas

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”

Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço

O poema, senhores,
não fede
nem cheira

Ferreira Gullar


O GÊNIO FERREIRA GULLAR

Se fosse jogador de futebol, ele poderia ser chamado polivalente. Mas Ferreira Gullar, pelo que me consta, jamais calçou um par de chuteiras na vida. Multimídia? Não gosto desta palavra, que também não combina com ele. Mas vamos lá. José de Ribamar Ferreira, em setembro, completa 80 anos. Lúcido e em plena atividade intelectual, é apontado, quase por unanimidade, o maior poeta brasileiro vivo, embora, já dizia Drummond, poeta não se mede com fita métrica.
Filho de um quitandeiro, nasceu em São Luís, Maranhão, estado mais pobre do Brasil, ao lado do vizinho Piauí, que também deu grandes poetas, como Mário Faustino e Torquato Neto – ambos precocemente mortos. Neste caso, a miséria do Maranhão é a mesma do Piauí, só separada pelo rio Parnaíba.
Mas Ferreira Gullar, pseudônimo literário que adotou, mudou-se para o Rio de Janeiro em 1951, de só onde saiu para o exílio, vinte anos mais tarde, depois de perseguido e preso pela ditadura militar.
Seu livro de estreia, Um pouco acima do chão, foi premiado pelo Jornal de Letras, do Rio de Janeiro. Manuel Bandeira fazia parte do corpo de jurados. Em 1954, publicou A Luta Corporal. Sobre este livro há um episódio curioso. A poesia de Gullar quase sempre esteve focada nas questões sociais. E foi com espanto que o poeta, numa livraria carioca, encontrou seu livro no meio de publicações esportivas. Fato semelhante ocorreu com outro poeta brasileiro, Mario Quintana, cujo livro Apontamentos de História Sobrenatural, repousava na prateleira das xaroposas obras de auto-ajuda.
No exílio, Gullar passou por diversos países, Rússia, Chile, Peru e Argentina. Em Buenos Aires, além de colaborar no jornal O Pasquim, uma das mais importantes publicações da imprensa brasileira no combate à ditadura, para sobreviver, também deu aulas particulares de português. E foi exatamente em Buenos Aires, depois de um longo silêncio, que ele escreveu, entre maio e outubro de 1975, a sua obra mais importante, Poema Sujo, publicado no Brasil quando o poeta ainda se encontrava no exílio. Além de poeta, Gullar é dramaturgo, ensaísta, artista plástico e crítico de arte, com algumas incursões pela música popular e erudita, como letrista – colocou letra no famoso Trenzinho Caipira, de Heitor Villa Lobos Resumindo, Ferreira Gullar é gênio. Quando da publicação do Poema Sujo, Vinícius de Moraes assim se manifestou: “Gullar é o último grande poeta brasileiro.” Otto Maria Carpeaux, o notável crítico que a Áustria mandou para o Brasil, e Tristão de Athayde fizeram coro ao “Poeta da Paixão e foram mais longe. O primeiro: “Sua inteligência é algo extraordinário, seu talento poético de alta categoria [...] Grande poeta e grande crítico de poesia.” Mestre Athayde, pseudônimo de Alceu Amoroso Lima: “O lirismo trágico e subversivo de Ferreira Gullar é um pequeno mundo dos problemas mais candentes da beleza poética deste fim de civilização e deste século que estamos vivendo em carne viva, e de que esse grande poeta é uma das vozes mais autênticas.”


[Foi respeitada a ortografia brasileira]


Júlio Saraiva – São Paulo, Brasil
(Recebido por e-mail)

quinta-feira, 25 de março de 2010

Ary dos Santos


Mãe solteira

Tive um filho que era teu, mas quando me abandonaste
O filho ficou só meu, fruto apenas duma haste
Por ele passei as passas que ninguém há-de passar
Andei ruas, corri praças, e o meu filho por criar

Lá porque sou mãe solteira não me atirem o desdém
Amei de muita maneira, com amor de pai também
Fui operária do meu corpo, mulher homem a lutar
Eu não quis um filho morto, e o meu filho sabe andar

Sabe andar de pés no chão
Com o ar de quem perdoa
A um pai que disse não
Porque o não já não magoa;
A mulher que eu soube ser
Foi pelo filho que tive
E agora, o que acontecer
É porque o meu filho vive

Se tu hoje queres voltar sou eu que digo que não
Eu também lhe soube dar a força que os homens dão
Mãe solteira, mas inteira, mulher que soube parir
Tu não estás á minha beira, e o meu filho sabe rir.
Ary dos Santos

José Carlos Ary dos Santos, nasceu em Lisboa a 7 de Dezembro de 1937, onde faleceu a 18 de Janeiro de 1984.
Poeta, escfreveu mais de 600 poemas para canções, vencendo, com pseudónimo, Festivais da Canção da RTP com “Desfolhada” e “Tourada”.
À data da sua morte tinha em preparação um livro de poemas intitulado “As Palavras das Cantigas”, onde era seu propósito reunir os melhores poemas dos últimos 15 anos, e um outro intitulado Estrada da Luz - Rua da Saudade, que pretendia fosse uma autobiografia romanceada.
O poema que transcrevo, foi, musicado por Nuno Nazareth Fernandes, uma das melhores interpretações de fadista Maria Armanda.

quarta-feira, 24 de março de 2010

Mayer Garção


A Vénus de Pedra


Por entre os ramos, entrevê-se a lua;
corta o luar as sombras do arvoredo…,
- Uma Vénus de pedra grave e nua,
no parque do castelo alveja o medo.

Nua e soberba, luminosa e pura,
é um sonho de amor que se gelou!
Nada lhe ofusca a eterna formosura.
como é de pedra, é virgem. - Nunca amou.

Envolvem-na na mesma adoração
os astros que vagueiam pelo espaço
e as folhas que se arrastam pelo chão…

Cobre-a agora da luz um raio baço…
- Mas a tranquila deusa é sem paixão,
e o seu olhar é frio como o aço.

Francisco de Sande Salema Mayer Garção

segunda-feira, 22 de março de 2010

Júlio Saraiva


DEUS BRASILEIRO

Tambor está velho de gritar
ó velho deus dos homens
deixa-me ser tambor
corpo e alma só tambor
só tambor gritando na noite quente
dos trópicos.”

- José Craveirinha -

Abre as cortinas do passado,
Tira a Mãe Preta do cerrado
Põe o Rei Congo no congado.
Brasil... Brasil...”

- Aquarela do Brasil, de Ary Barroso -

o meu deus é brasileiro
não chegou em caravela
veio num navio negreiro
de luanda de benguela

o meu deus é brasileiro
fala nagô fala tupi
pois que tupã mais olorum
por bem fundiram-se num só
contra o mal do cativeiro
a mesma dor nenhuma dó

o meu deus é capoeira
e de arco e flecha também é
é cipó pemba e aroeira
briga na mão briga no pé
não é deus de brincadeira
o que alimenta a minha fé
este meu deus não é de amém
este meu deus é deus de axé

deu-me sangue de floresta
e uma alma boa de tambor
coração lá na senzala
fez do sofrimento a festa
sem esquecer nunca do horror
do tronco do pelourinho
e do maldito do feitor

o meu deus vem do quilombo
tá no chão não nos altares
não se entrega a qualquer tombo
manda tudo pelos ares
nesta terra de palmeiras
fez a história de palmares

o meu deus é deus de ginga
o meu deus é deus de jongo
foge pra lá diogo cão
mais respeito ao rei do congo

o meu deus é brasileiro
e vai do oiapoque ao chuí
é o deus de macunaíma
deus de ceci deus de peri
o meu deus é o de dandara
este meu deus é o de zumbi

Júlio Saraiva, São Paulo, Brasil (recebido por e-mail)

domingo, 21 de março de 2010

Dia Mundial da Poesia

"A imaginação e a sensibilidade estão implicadas tal como a inteligência. Alem disso, a poesia mergulha nas raízes, as próprias origens da linguagem nas profundezas do ser, do corpo e da alma."
George Jean

Dia Mundial da Poesia


Dia Mundial da Poesia

Ao encontro do poeta

(No Dia Internacional da Poesia)

Fugir,
Fugir e olvidar o espaço
Onde tudo é pó e sangue!
Sangue derramado p’lo Poeta
Que chora a meus pés a dor imensa
Da sua vida nua.
Refugiar-me no infinito
Da própria dor!
Só,
Só comigo a embalar-me
Na solidão que é minha
E não reparto.
Pó da estrada poeirenta
Onde a vida é morte
E a morte é vida.

Fugir,
Fugir p’ra além, alem das nuvens,
Chorar a solidão da vida escura,
Orar a alguém que não desvenda
A imensa solidão.

Aníbal José de Matos

sábado, 20 de março de 2010

Primavera


Primavera, eu te saúdo

Ei-la, estação bonita e ansiada
Com hinos de louvor à natureza!

Ei-la, dengosa e oferecida,
Motivando amores e sonhos d’ouro!

Ei-la, rejuvenescida e bela,
Pulsando vida, envolta em pétalas!

Ei-la, Primavera suave e apetecida,
Mensageira do Sol e da ternura!

Ei-la, sadia e desejada,
Cobrindo nosso peito de prazer,
Renovando o sabor de mais um dia!

Eu te saúdo, bem-vinda Primavera.


Aníbal José de Matos (do seu livro "CONFLITOS"-1992)

LUÍS DE CAMÕES

(Desenho de Aurélio Mesquita)


Soneto

Eu cantei já, e agora vou chorando
O tempo que cantei tão confiado;
Parece que no canto já passado
Se estavam minhas lágrimas criando.

Cantei; mas se me alguém pergunta quando,
Não sei; que também fui nisso enganado.
É tão triste este meu presente estado,
Que o passado por ledo estou julgando.

Fizeram-me cantar, manhosamente,
Contentamentos não, mas confianças;
Cantava, mas já era ao som dos ferros.

De quem me queixarei, que tudo mente?
Mas eu que culpa ponho às esperanças,
Onde a Fortuna injusta é mais que os erros?

Luís de Camões

sexta-feira, 19 de março de 2010

Ana C.


SAMBA-CANÇÃO

Tantos poemas que perdi.
Tantos que ouvi, de graça,
pelo telefone – taí,
eu fiz tudo pra você gostar,
fui mulher vulgar,
meia-bruxa, meia-fera,
risinho modernista
arranhada na garganta,
malandra, bicha,
bem viada, vândala,
talvez maquiavélica.
e um dia emburrei-me,
vali-me de mesuras
(era uma estratégia),
fiz comércio, avara,
embora um pouco burra,
porque inteligente me punha
logo rubra, ou ao contrário, cara
pálida que desconhece
o próprio cor-de-rosa,
e tantas fiz, talvez
querendo a glória, a outra
cena à luz de spots,
talvez apenas teu carinho,
mas tantas, tantas fiz...

Ana C

Ana C era como se assinava Ana Cristina Cesar (1952-1983). Poeta, professora universitária, tradutora e jornalista, é considerada das vozes mais significativas
do que se chamou Poesia Marginal, surgida no Brasil na década de 1970,
em plena ditadura militar.
A Poesia Marginal não pode ser considerada um movimento. Eram poetas jovens e rebeldes que, sem acesso às grandes editoras, publicavam seus livros, quase artesanais, por conta própria, e os vendiam em portas de universidades, teatros e bares. Promoviam recitais em praças públicas, geralmente interrompidos pela polícia política.
Herdeiros dos modernistas de 1922, mais especificamente do irreverente Oswald de Andrade, e também dos concretistas de 1960, esses poetas abandonaram a chamada língua culta, optando por uma linguagem coloquial, empregando em seus poemas gírias e palavrões. Além de Ana C., fizeram parte também desta geração poetas como Torquato Neto, Paulo Leminski e Isabel Câmara, entre outros.
Ana C. suicidou-se aos 31 anos, atirando-se do 7° andar do apartamentos de seus pais, no Rio de Janeiro. Ora dócil, ora cínica e debochada, sua obra tem sido objecto de estudos e teses no Brasil. Publicou, entre outros, Luvas de Pelica, A Teus Pé e Inéditos e Dispersos (obra póstuma, organizada pelo poeta Armando Freitas Filho). Também traduziu poetas como Sylvia Plath e Emily Dickinson.

.

Recebido, por e-mail, do meu colega brasileiro, Júlio Saraiva, para quem vai aquele abraço.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Júlio Saraiva


PARA ANA CRISTINA

“e na deck-chair
ainda te escuto folhear os úlimos poemas
com metade de um sorriso.”

Ana C.

não consigo deixar
de afundar navios
e alugar cômodos
em casas mal-assombradas

espero pelo último round
vejo tuas fotos no livro
redescubro a hora no velho cuco
que deixou de funcionar quando eu era menino

Júlio Saraiva

Jornalista, poeta, dramaturgo, cronista e letrista de música popular, nasceu em São Paulo, onde vive até hoje, embora prefira o Rio de Janeiro, aos 6 de agosto de 1956. É incluído na segunda fase da Poesia Marginal. Autor de A Mímica do Vento (Edigrax, São Paulo, 1990) e Liturgia dos Náufragos (R.G. Editores, São Paulo, 2002), participou de diversas antologias. Tem poemas publicados em Portugal, Suécia e Holanda.
.
(Recebido por e-mail)

Manuel Bandeira


Arte de Amar

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus — ou fora do mundo.
As almas são incomunicáveis.

Deixa o teu corpo entender-se com outro corpo.

Porque os corpos se entendem, mas as almas não.

Manuel Bandeira



Manuel Bandeira, de seu nome completo Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho, nasceu no Recife (Brasil) a 19 de Abril de 1886, falecendo em 13 de Outubro de 1968, em Botafogo (Rio de Janeiro. Está sepultado no Mausoléu da Academia Brasileira de Letras, no Cemitério São João Batista.
Foi uma das figuras emblemáticas da cultura brasileira, assumindo lugares de destaque nos mais variados sectores da literatura e não apenas, deixando publicadas, entre muitas outras obras poéticas, A Cinza das Horas, Carnaval,
Libertinagem, Mafuá do Malungo e Alumbramento.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Brasil - Portugal


Tenho recebido (o dia de hoje então foi fértil nesse aspecto) vários e-mails de amigos brasileiros que são visitantes deste blogue assim como do outro, da minha autoria, "PRESENTE".
A todos aquele abraço e dizer-lhes que serão sempre bem-vindos.

terça-feira, 16 de março de 2010

Olga Amorim


Boca de vento

Vem de onde? Este vento
vem todo o dia. Vento de praia.
Vem o menino. Vem pelo vento.
Atento ao vento levanta
a arraia.

Vem de onde? Este vento
vem sobre o mar.
Brisa de praia, leve,
diária. Vento salino
vem desenhar.

Vento marinho, a soprar, soprar…
Sopro salgado embala a catraia
já sossegada, ancorada
na praia.

Vento tão leve
sempre a adejar
de praia em praia
inventa na areia
motivos do mar.

Olga Amorim

Brasileira, autora de “Dedos de “Prosa”, “Passa Poesia”, Olho d’água”, “Aventuras do Sapo Januário”, “Voo de libélulas haicai”, e “Revoada haicai”. Premiada em vários concursos literários.

sábado, 13 de março de 2010


Engulhos

Quem me derruba
Este muro
Deste gueto
Que meus horizontes limita?
Quem me corta
Esta cerca
Que me condiciona
Que me aprisiona?
Quem me corta
Esta invisível grilheta
Que me fere
Que me deprime?
Quem me entulha
O caminho que de mim
Te leva, de mim
Te aparta?


Carmindo Pinto de Carvalho

Natural de Nagosa, Moimenta da Beira, actualmente a residir em Rorschach (Suíça), onde abraçou a vida associativa, tem centenas de poemas publicados.

quarta-feira, 10 de março de 2010

José Saibreira


Fragmentos

Fragmentos de vidas fragmentadas,
Momentos de almas retalhadas.
Havia de tudo na feira das vaidades
Por cima das bancas rentes ao caminho.
O bom e o mau misturados com o indiferente.
O rico e o pobre ambos com ar ausente.
O pecado e a virtude sem marca registada,
Mas a dor estava bem certificada.

O dinheiro circulava a rodos
Cunhado em moedas de duas faces:
A das “caras” estava polida pelo brilho do ouro
E trazia colado o “direito” dos artifícios
Com a razão das leis feitas à medida;
A outra era a dos “cunhos”,
Cunhada pelas arestas do martírio
Dos que sofrem no silêncio das necessidades vitais.

Onde o meu lugar?
Onde a verdade do amanhã?
Haverá outro caminho?
Haverá outra vontade?
Estou só e o mundo não me conhece.

José Saibreira

José Saibreira foi geólogo em Angola e professor de várias cadeiras do ramo da Ciência no ensino oficial e particular. Técnico de topografia. Depois de reformado começou a dedicar-se à escrita (romance, poesia, conto e teatro), tendo obtido vários prémios literários.

(In II Antologia de poetas lusófonos-Editada por Folheto)

terça-feira, 9 de março de 2010

António Gedeão


Poema das coisas belas


As coisas belas,
as que deixam cicatrizes na memória dos homens,
por que motivo serão belas?
E belas, para quê?

Põe-se o Sol porque o seu movimento é relativo.
Derrama cores porque os meus olhos vêem.
Mas por que será belo o pôr do Sol?
E belo, para quê?

Se acaso as coisas não são coisas em si mesmas,
mas só são coisas quando coisas percebidas,
por que direi das coisas que são belas?
E belas, para quê?

Se acaso as coisas forem coisas em si mesmasm
sem precisarem de ser coisas percebidas,
para quem serão belas essas coisas?
E belas, para quê?

António Gedeão

António Gedeão, pseudónimo de Rómulo Vasco da Gama de Carvalho, nasceu em Lisboa a 24 de Novembro de 1906, cidade onde faleceu a 19 de Fevereiro de 1997. Foi químico, professor de Físico-Química do ensino secundário, pedagogo, investigador de História da ciência em Portugal, divulgador da ciência, e poeta. Pedra Filosofal (já publicado neste blogue) e Lágrima de Preta, são dois dos seus mais célebres poemas, mas escreveu, entre outras obras de poesia, Movimento Perpétuo, Teatro do Mundo, Declaração de Amor, Máquina de Fogo, Poesias Completas, Linhas de Força, Soneto, Poema para Galileu, Poemas Póstumos, Poemas dos textos e Novos Poemas Póstumos.

domingo, 7 de março de 2010

Sebastião Pimentel Monteiro


Figueira da Foz

Onde vão as manhãs de colorido,
Meu varandim da praia ao sol doirado?
- Ao pensamento triste… dolorido…
De ver tanto desprezo que dá brado…

Onde vão os arrebóis das tardes quentes
Em cambiante de cor que já não esqueço?
- Saber que são mais tristes os poentes,
Na mostra de retrógrado progresso…

Onde vai o aroma à maresia
Salgando nas narinas agridêz?
- Perdeu-se, sem esp’rança de algum dia
Aconteça sentir-se uma só vez…

E aonde vai o rebate da maré
Constante, da muralha enamorado?
- À glória do desleixo… que o mar, até
…Fugiu para bem longe, amargurado…

Sebastião Pimentel Monteiro

Um dos meus grandes e saudosos amigos e colegas, natural da freguesia de Buarcos (Figueira da Foz), foi dirigente desportivo (do Sporting Clube Figueirense), tendo praticado futebol, basquetebol, ginástica acrobática (ficaram célebres as suas actuações em diversas praças de touros), ténis de mesa e campismo.
Sobretudo como poeta, colaborou em diversos jornais, como O Figueirense, A Voz da Figueira, Mar Alto, Notícias da Figueira, etc., especializando-se numa das suas paixões, a fotografia.
Tive o prazer de colaborar com Sebastião, fazendo a locução do seu diaporama “Praia de Sempre”, dedicado à Figueira da Foz, em que se podem ver centenas de imagens da Praia da Claridade ao longo dos tempos.

sábado, 6 de março de 2010

António Augusto Menano


Depois de a dor a prece


O arrepio faz parte da nuvem que assiste
ao argonauta saído do inferno,
pois que a estrada para o paraíso
passa pelo frio azulverdeazul de Inverno.


É ou não certo que o sol
destrói quem tenta desvendar
segredos pessoais?
A vida também queima
quem a tenta:
estar,
ou compreender demais.


Amor, ajuda o corpo a desistir
de viagens não escolhidas,
onde a certeza de existir
acorda abismos que viajam
a vontade abrasante de partir.


Amor, continua a amar a terra,
como mãe tua e pão e vinho,
e dá-me a certeza repousante
de assassinar a noite
e a espera de sorrir.


António Augusto Menano no seu livro "Tempo Vivo", de 1963

quinta-feira, 4 de março de 2010


Casa do Paço

Delft, o canal,
Os azulejos de mil cores
Nas paredes do Paço.
Barco afundado
Oriundo
Da Holanda das flores.

Presente de mão beijada
Para esta cidade
À beira-mar.
Cavaleiros à conquista do Universo.

Jóias esquecidas
Sem vitrinas
Nem dourados.

Que contos de fadas
Encerra a minha terra!

Histórias bonitas p’ra contar!

Aníbal José de Matos (do livro em preparação "FIGUEIRA MINHA")

António Aleixo


De ninguém posso fazer
A sorte – porque ninguém
Poderá dar ou vender
Uma coisa que não tem.

Sou um cauteleiro em forte,
P’ra vender jogo me empenho,
Se um dia vender a sorte,
Vendo aquilo que não tenho.

Na morte há tanta alegria,
Tanto desgosto e prazer,
Como os que a gente sentia
Anos antes de nascer.

Há dia pus-me na frente
Dum espelho onde me via…
E ri, ri… ri francamente,
Porque não me conhecia.

Fui no meu rosto encontrar,
Por sobre o sulco dos anos,
A máscara que os desenganos
Me forçaram a usar.

Quem me dera que voltasses,
Infância, que já lá vais…
Para que, comigo, escutasses
Os conselhos de meus pais.

Era ainda muito novo,
Já tinha grande vontade
De ser um poeta do povo
- Ainda com pouca idade.

António Aleixo


António Aleixo, poeta popular que ficou conhecido para todo o sempre, nasceu em Vila Real de Santo António em 18 de Fevereiro de 1899 e faleceu em Loulé a 16 de Novembro de 1949.

Ficaram célebres as suas quadras, de que reproduzo algumas extraídas da obra "Este livro que vos deixo", editado pela NOTÍCIAS editorial.

quarta-feira, 3 de março de 2010

Edmundo de Bettencourt


Palhaço

O cómico avançou, num rodopio,
galvanizando o ar, depois cantou,
com graça, entre piruetas, recitou,
e nem um riso único surgiu!

De mágoa, eu tinha lágrimas em fio,
quando uma ausência estranha despertou
o espectador que eu era e me apontou
o coliseu sem público… vazio…

A solidão macabra da plateia
bem cedo fez, da torva sombra feia,
no meu olhar. Altas paisagens de ouro:

- Fumos de luz onde voei, perdido,
O ano dum minuto agradecido,
Para vê-la no fim rir do meu choro!

Edmundo de Bettencourt

Edmundo Alberto de Bettencourt, poeta e cantor, estabeleceu um marco no fado de Coimbra. Nascido no Funchal a 7 de Agosto de 1899, faleceu em Lisboa em 1 de Fevereiro de 1973.
Fez parte da chamada "Década d'0iro". Bettencourt foi igualmente escritor e poeta de grande relevo. Em 1927 foi um dos fundadores da revista literária “Presença”, sendo, inclusivamente, quem sugeriu o título.

segunda-feira, 1 de março de 2010

Mário Beirão


Pastoral
Pastora dos olhos que cismam cuidados
Foi gosto de Deus
Fugirem meus gados
P’ra junto dos teus!

Ao longo dos ermos, formosa, divagas
Dice Aparição!
(E cerram-se as chagas
Do meu coração…)

Já eu te sonhara, bem antes da hora
Feliz, de te ver,
Em tudo que inflora
No Sol a romper!

Morena zagala dos olhos castanhos
E trémula voz:
Não sei dos rebanhos…
Quedamos a sós…

Do ocaso falecem as últimas brasas
Em murmuras preces…
Desdobras as asas;
Sorrindo, esplandeces!

Sorris e despontam, nos secos restolhos,
As Graças mais belas…
Ah, beijar teus olhos:
Beber luz de estrelas!

Mário Beirão

Mário Pires Gomes Beirão, de seu nome completo, nasceu em Beja a 1 de Maio de 1892, e faleceu em Lisboa em 19 de Fevereiro de 1965. Era licenciado em Direito pela Universidade de Lisboa.
Este poema foi extraído do seu livro Novas Estrelas, que recebeu em 1940 o Prémio Ricardo Malheiros.
Autor doutras obras como Ausente, Lusitânia, Pastorais, A Noite Humana, Mar de Cristo, etc.

Francisco Afonso


SER AVÔ


É SER VELHINHO
É SER VELHOTE
É SER VELHO
É SER VELHADAS
É TER TERNURA
.
É ser pai duas vezes
É amar duas vezes
É gostar duas vezes
É sofrer duas vezes
É sorrir duas vezes
É chorar duas vezes
.
É morrer por dentro e viver por fora
É ser incompreendido duas vezes
É viver acabrunhado duas vezes
É ser solitário duas vezes
É estar sozinho duas vezes
.
É estar entre a multidão pensando que está só
É julgar que ganha quando está perdendo
É sorrir por fora, quando chora por dentro
É tentar sorrir quando está chorando
É querer dar e não ter o quê
É, muitas vezes não ter esperança
É viver de recordações
.
É nem sempre gostar de recordar
É querer esquecer sem conseguir
É não ter lembranças para lembrar
É não ter memória para recordar
É não ter nada do que tem
.
É TER MUITO É TER POUCO
É SER AVÔ É SER AMIGO
É SER A MÃO QUE DÁ A MÃO
SER AVÔ

Francisco Afonso
 
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