terça-feira, 3 de novembro de 2009

José Gomes Ferreira


Morrer

Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados,
fartos do mesmo sola fingir de novo todas as manhãs,
convocaríamosos amigos mais íntimos
com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer:
"Fulano de tal comunica a V. Exa.
que vai transformar-se em nuvem
hoje às 9 horas. Traje de passeio".
E então, solenemente,
com passos de reter tempo,
fatosescuros, olhos de lua de cerimónia,
viríamos todos assistir
à despedida.
Apertos de mãos quentes.
Ternura de calafrio."Adeus! Adeus!"
E, pouco a pouco, devagarinho,
sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
a carne, em vez de apodrecer,
começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão subtil... tão pólen...
como aquela nuvem além (vêem?)
— nesta tarde de Outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis...
.
José Gomes Ferreira
.

José Gomes Ferreira nasceu no Porto em 9 de Junho de 1900.
Licenciou-se em Direito, e posteriormente foi Cônsul na Noruega. Paralelamente, seguiu também carreira como compositor, chegando a ter a sua obra "Suite Rústica" estreada pela orquestra do maestro figueirense David de Sousa.
Ganhou em 1961 o Grande Prémio da Poesia instituído pela Sociedade Portuguesa de Escritores, instituição de que viria a ser Presidente e foi condecorado pelo Presidente da República Ramalho Eanes com a comenda da Ordem Militar de Santiago de Espada, recebendo posteriormente o grau de grande oficial da Ordem da Liberdade.
Faleceu em 8 de Fevereiro de 1985.

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